Pense num lugar novo. Pense em um lugar tão novo que para falar das coisas era necessário apontá-las e dizer-lhes um nome. Pense em um livro que conta a saga de fundadores liderados pela família Buendia-Iguaran, que tiveram como patriarcas José Arcadio Buendia e Úrsula Iguarán (que eram primos e que se casaram assustados pelo mito de que o casamento entre familiares poderia gerar filhos com rabos de porco) e que se inicia da maneira a seguir:
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casa de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes, como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo.”
(Gabriel García Marquez. 1967. Cem anos de Solidão, página 07)
Pense em um livro fantástico, narrado de maneira onisciente, que se desenrola em quatro tempos, sem uma precisa ordem cronológica. O romance segue as memórias e construindo-se mediante os nascimentos e mortes da família, faz com que o leitor, nesse ir-e-vir, passe a sentir-se como membro da família Buendia, e é possível perceber suas perdas, rir das invenções e alegrias de José Arcadio Buendia, familiarizar-se com a força de Úrsula.
A inocência é tão palpável no decorrer do livro que chega a ser dolorosa em sua perda. Como tudo que é novo, cada descoberta causa espanto a José Arcadio Buendia, como podemos ler a seguir:
“Por fim, numa terça feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia de sua imaginação, e revelou a eles suas descobertas:
- A Terra é redonda como uma laranja.
Úrsula perdeu a paciência “ Se você pretende ficar louco, fique sozinho”, gritou, “Não tente incutir nas crianças as suas idéias de cigano”.”
A matriarca, Úrsula Iguarán, é uma mulher forte, mãe esforçada, que pensa nos filhos, mas que um dia também some, também erra, também se angustia. Numa das passagens mais doces e fortes, (uma passagem que, inclusive, vocês poderão perceber que eu estou sempre que eu a citar), Úrsula explode ante o cansaço de toda uma vida. Ante a análise de que todos nós somos feitos de sangue e dores, limites e fracassos, que somos humanos no final...
“Lembrando-se destas coisas enquanto aprontavam o baú de José Arcadio, Úrsula se perguntava se não era preferível se deitar logo de uma vez na sepultura e lhe jogarem a terra por cima, e perguntava a Deus, sem medo, se realmente acreditava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantas penas e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando a sua própria perturbação e sentia desejos irreprimíveis de se soltar e não ter papas na língua como um forasteiro e de se permitir afinal um instante de rebeldia, o instante tantas vezes desejado e tantas vezes adiado, para cortar a resignação pela raiz e cagar de uma vez para tudo e tirar do coração os infinitos montes de palavrões que tivera que engolir durante um século inteiro de conformismo.
— Porra! — gritou.
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
— Onde está? — perguntou alarmada.
— O quê?
— O animal!— esclareceu Amaranta.
Úrsula pôs o dedo no coração.
— Aqui — disse.”
Amaranta, que começava a colocar a roupa no baú, pensou que ela tinha sido picada por um escorpião.
— Onde está? — perguntou alarmada.
— O quê?
— O animal!— esclareceu Amaranta.
Úrsula pôs o dedo no coração.
— Aqui — disse.”
***
“Só quando começou a desmontar a porta do quartinho é que Úrsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu com certa amargura: “Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos.” Úrsula não se alterou.
— Nós não iremos — disse. — Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.
— Ainda não temos um morto — ele disse. — A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui,eu morro.”
O livro, também narra o massacre de Arataca (http://www.espacoacademico.com.br/074/74adoue.htm ) e traz algumas cenas tão detalhistas, que o leitor sente como se fossem trabalhadas minuto à minuto, quadro à quadro, com o cuidado de inseri-lo na paisagem, colocando-o sobre os ombros de seu pai, dando-lhe uma visão panorâmica de toda a cena:
“[...] esperando um trem que não chegava, mais de três mil pessoas, entre trabalhadores, mulheres e crianças, tinham atulhado o espaço descoberto em frente da estação e se apertavam nas ruas adjacentes, que o exército fechara com filas de metralhadoras.
- Senhoras e senhores –disse o capitão com uma voz baixa, lenta, um pouco cansada- têm cinco minutos para se retirar.
A vaia e os gritos repetidos afogaram o toque de clarim que anunciou o princípio do prazo. Ninguém se mexeu.
- Já passaram os cinco minutos –disse o capitão no mesmo tom.- Mais um minuto e atiramos.
José Arcádio Segundo, suando gelo, desceu o menino dos ombros e o entregou à mulher. “Esses cornos são capazes de disparar”, murmurou ela. José Arcádio Segundo se ergueu acima das cabeças que tinha pela frente, e, pela primeira vez em sua vida levantou a voz.
- Cornos! –gritou-. Podem levar de presente o minuto que falta. (p.: 269)
Ao fim do seu grito aconteceu uma coisa que não lhe produziu espanto, mas uma espécie de alucinação. O capitão deu a ordem de fogo e quatorze ninhos de metralhadoras responderam imediatamente. Mas tudo parecia uma farsa. Era como se as metralhadoras estivessem carregadas com fogos de artifício, porque se escutava o seu resfolegante matraquear e se viam as suas cusparadas incandescentes, mas não se percebia a mais leve reação, nem uma voz, nem sequer um suspiro, entre a multidão compacta que parecia petrificada por uma invulnerabilidade instantânea. De repente, de um lado da estação, um grito de morte quebrou o encantamento: “Aaaai, minha mãe”. Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclisma, arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva, enquanto a mãe e o outro eram absorvidos pela multidão centrifugada pelo pânico.(p.: 269-270)”
Muitos anos depois, o menino haveria de contar ainda, apesar de os vizinhos continuarem a encará-lo como um velho maluco, que José Arcádio Segundo o erguera por cima da sua cabeça e se deixara arrastar, quase no ar, como que flutuando no terror da multidão, para uma rua adjacente. A posição privilegiada do menino lhe permitiu ver que nesse momento a massa ululante começava a chegar na esquina e a fila de metralhadoras abriu fogo. (p.: 270)
E nesse jogo, nesse avançar e retroceder como uma memória aberta, um livro de lembranças, uma forma inigualável de adentrar a vida dos personagens, sua saga, suas alegrias, suas perdas, suas mortes. Nós, os leitores, adentramos uma vida que não se repetirá, que, como diz o próprio livro “ Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”
Há muitos outros personagens para compor essa mágica história. Não estou citando todos porque seria entregar o jogo. Mas, só o fato de existir Macondo, esse lugar em que “ CHOVEU durante quatro anos, onze meses e dois dias.” (...) em que “A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos” (...) e que se “Não fosse por esse padecimento que nada teria tido de pudendo para alguém que não estivesse doente também de pudicícia, e se não fosse a perda das cartas, Fernanda não teria se importado com a chuva, porque afinal de contas toda a sua vida tinha sido como se estivesse chovendo.Não modificou os horários nem perdoou os ritos. Quando a mesa ainda estava suspensa sobre tijolos e as cadeiras colocadas sobre tábuas para que os comensais não molhassem os pés, ela continuava servindo com toalhas de linho e louça chinesa, e acendendo os candelabros no jantar, porque achava que as calamidades não podiam servir de pretexto para o relaxamento dos costumes”(...) Até que, “Assim foi. Numa sexta-feira, às duas da tarde, iluminou-se o mundo com um sol bobo, vermelho e áspero como poeira de tijolo e quase tão fresco como a água, e não voltou chover durante dez anos”, acreditem, já é um livro valiosíssimo!
Como não é um livro fácil, (inclusive, há uma matéria na folha de São Paulo que aponta o livro como “Impossível de ser lido” pelos italianos. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1184951-para-italianos-cem-anos-de-solidao-e-impossivel-de-ser-lido.shtml). Existe um .gif para auxiliar na leitura. Ele traça a árvore genealógica da família Buendia para facilitar a compreensão de cada etapa das várias que ocorrem de maneira não cronológica no romance.
Enfim, mediante todo esse realismo mágico, acredito que por mais esforço que eu possa fazer, por mais termos técnicos que eu possa colocar aqui, nenhum será capaz de exprimir o meu sentimento por esse livro. A história criada por Garcia Marquez é, pra mim, a enciclopédia da imaginação, é uma porta aberta pra Nárnia, a Nárnia mais linda que exista, aquela que nos faz reencontrar algo de nós mesmo que talvez, nem seja a nós mesmos, mas um retalho de um sonho.
Meu marido já ouviu falar tanto nesse livro, que chega a se irritar algumas vezes, dizendo que cruzo minha vida à de Úrsula. Mas, realmente, há dias em que me sinto em Macondo, em suas chuvas, em suas tristezas; em sua terra vermelha, coberta pela vida e pela morte.
E, além de tudo,
“O mundo terá acabado de se foder”, disse então, “no dia em que os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.”
uma passagem como essa vale todo o meu amor.
Por causa desse livro, quis ir morar na Colômbia.
É o livro da minha vida, indubitavelmente.
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Sobre o autor:
Gabriel García Márquez (Aracataca, 6 de março de 1927[1]) é um escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Considerado um dos autores mais importantes do século 20, ele foi premiado com o 1972 Prémio Internacional Neustadt de Literatura de 1982 e o Nobel de Literatura de 1982 pelo conjunto de sua obra, que entre outros livros inclui o aclamado Cem Anos de Solidão. Foi responsável por criar o realismo mágico na literatura latino-americana. Viajou muito pela Europa e vive actualmente no México. É pai do cineasta Rodrigo García.
Em abril de 2009 declarou que se aposentou e que não pretendia escrever mais livros. Essa notícia viu-se confirmada em 2012, quando o seu irmão, Jaime Garcia Marquez, noticia que foi diagnosticada uma demência a Gabriel Garcia Marquez e que, embora esteja em bom estado físico, perdeu a memória e não voltará a escrever.
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